sábado, 22 de agosto de 2015

Além da Imaginação #1: Terra Sem Deus - Prólogo



Sim, mais uma seção nova. Aqui pode encontrar histórias, contos e coisas do gênero. No caso, isto é uma prévia de um suposto livro. Serão postados o prólogo e mais três capítulos. Espero que gostem.



PRÓLOGO

As rochas afiadas castigaram sua mão pela centésima vez. O sangue escorria quente, passando pela palma e depois pelo braço. O peito ardia e os braços doíam absurdamente. As pernas tremiam e os pés pareciam que iriam escorregar a qualquer momento. Um movimento em falso e despencaria para a morte.
Estou quase lá...
Perdera a conta de quantas vezes pensara isso. Quanto mais subia, mais o corpo mostrava sinais de cansaço e dor e mais distante parecia, mas ele continuava.
Quando finalmente alcançou o topo, impulsionou o corpo com braços trêmulos, para por fim despencar exausto no solo de rocha fria. Deitou-se de costas e contemplou o céu noturno iluminado pela lua cheia, esperou alguns instantes e se pôs sentado. Olhou para baixo e constatou que era uma bela queda. Quando finalmente estava em pé analisou os ferimentos nas mãos. Cortes fundos em diversos pontos, mas logo o sangue secaria e não passaria de um pequeno sacrifício pelo que veio fazer.
A sua frente não muito longe da beirada uma enorme boca negra se abria. A caverna trouxe sentimentos estranhos à figura. O medo surgiu das estranhas e o fez recuar um passo, a ponto de quase cair do penhasco.
Não, preciso prosseguir. O pensamento lhe deu forças para avançar. Sabia que ali, ninguém o seguiria. Ele estava em um lugar proibido, amaldiçoado por todos. Porém, um lugar que esperava recuperar tudo.
Tirou a mochila das costas e retirou um bastão com um tecido encharcado. De lá ainda, retirou duas pedras e começou a bater uma contra outra até suas faíscas acenderem a ponta do bastão. Levantou a tocha e analisou o caminho a frente, não viu muito e finalmente decidiu avançar.
Seguiu por um único caminho sinuoso entre rochas naturais. Uma ansiedade lhe subia como uma ânsia de vômito, vez após outra. O corpo tremia por causa do cansaço, de frio ou medo, não fazia diferença. A vontade de que tudo aquilo fosse apenas lenda gladiava-se com a necessidade que fosse verdade, que tudo fosse possível.
Seus ossos parecia estarem congelados quando chegou ao final do caminho apertado, seus dedos apertados em torno do cabo da tocha. Viu uma fumaça branca sair de sua boca quando percebeu algum movimento próximo. Virou-se depressa, mas não viu nada. Desconfiado se pôs a analisar o local. Estava agora em um enorme circulo com paredes altas de pedras.
Um passo ecoou a sua frente. Seu corpo paralisou. Mais passos vieram. Algo como pés descalços caminhando lentamente em um chão de pedras repleto de poças d’água. Olhou para baixo e constatou que existiam poças por todos os lados daquela superfície irregular de pedra, que vinha de goteiras de vários lugares da imensidão escura que era o teto. Não pode ser...
Esticou o braço para aumentar o raio de iluminação. A outra mão escorregou lentamente até o cabo da velha faca que levava na cintura, mas quando finalmente se preparou, a figura na sua frente o espantou. Ele recuou três passos e estacou.
- Olá – a criança na sua frente não parecia oferecer perigo, porém tinha a pele muito branca, como se nunca tivesse visto a luz do sol. Os olhos eram escuros, assombrosos.
- Quem é você? – a voz do rapaz ecoou rouca e desconfiada.
- Você sabe quem ela é e também quem eu sou – a segunda voz veio de trás da criança. Mais uma figura surgiu, e ao contrário da menina que se cobria com trapos, essa estava nua. Apesar da pele também ser muito branca, essa era uma mulher adulta, de corpo esbelto e nu. Os seios redondos eram cobertos pelo cabelo negro.
- Vocês, são reais...
- Claro que somos – disse a terceira voz, rouca e antiga, vinda da escuridão, sem se revelar.
O rapaz apertou o cabo da tocha e não retirou a mão do cabo da faca.
- Eu preciso de vocês, tenho algo a pedir – falou com toda a convicção que conseguiu reunir.
A mulher sorriu e se aproximou com passos curtos e calmos.
- Claro que precisa – seus dedos dançavam no peitoral do rapaz, que estava coberto por um colete de couro – você os quer de volta.
Neste momento o rapaz encarou a face branca e de olhos negros, que apesar de antinatural provocava obscenos desejos. Ele balançou a cabeça e recuou. Era exatamente aquilo que as lendas alertavam As Senhoras, As Bruxas, filhas dos Criadores, bestas imortais e detentoras de poderes obscuros.
- Afaste-se – puxou sua faca e apontou – Eu exijo que façam o que peço.
A mulher se manteve calma.
- Você fede a desespero garoto – a voz da velha na escuridão.
A sensação de não saber de onde vinha à terceira voz era tão ruim quanto ter duas criaturas demoníacas na sua frente e pior, da vontade de abaixar sua arma e se entregar a mulher sedutora. Ele sabia que sua faca estava cega, mas era tudo que tinha para ameaçar, tudo que tinha para conseguir aquilo que queria. Talvez realmente fedesse a desespero.
- Você quer sua família de volta? Seu pai, sua mãe, seu irmão... Sua amada?
Assentiu, sem nada dizer, com sua arma rudimentar ainda erguida.
- Nós podemos fazer isso. E depois?
- Depois?
- Eles morreram porque você não foi forte o suficiente para protegê-los. Se os trouxemos de volta, quem garantiria que não aconteceria a mesma coisa?
- Eu... Estaria lá... – ele agora se sentiu perdido, sua vontade e convicção se esvaindo. O que é isso? Algum tipo de feitiçaria?
- Como esteve dessa vez? Não me parece que fez um bom trabalho, eles mataram eles, tiraram ela de você. E as coisas que fizeram com ela antes de finalmente mata-la? A tocaram, a fizeram fazer coisas, para no fim cortarem sua garganta.
As lágrimas escorreram quentes pelo rosto frio. Quando se deu conta, seus dois braços pendiam, ele não ameaçava mais ninguém com aço ou fogo. Sentiu-se como uma criança indefesa.
- Eu só os quero de volta – foi tudo que conseguiu dizer.
- Sim, mas vivemos em um mundo escuro e brutal. Você suportaria vê-los morrer de novo? Suportaria falhar com ela novamente? Você é fraco, e os deixaria morrer mais uma vez.
- Um covarde que falhou e agora quer uma saída fácil – a velha veio como uma facada.
Ele caiu de joelhos. O que está acontecendo comigo? Ele sabia que tinha que se levantar lutar, conseguir o que queria, mas era como se o que elas falaram o atingisse de uma maneira mais profunda. As verdades que elas falavam adentravam em sua alma.
- Mas existe outra forma – a mulher se agachou ao seu lado e encostou os lábios em seu ouvido – você pode optar por poder, para os fazerem pagar e todos se ajoelharem perante você. Ninguém mais teria que sofrer como você ou sua família.
O cheiro dela invadiu suas narinas. Era algo como flores, suor e sexo...
- Poder?
A garotinha agora também estava perto, encostou-se a seu braço e o olhava fixamente.
- Poder que ninguém nunca possuiu. Seria suficiente para dobrar todos a sua vontade e matar qualquer um que se opusesse.
A mulher se aproximou mais e mais, e agora seus seios roçaram com a roupa rústica.
- Sim. Você seria mais forte e ágil que qualquer outro, nada poderia mata-lo, nem aço e nem o tempo.
- Poderia moldar o mundo de acordo com suas vontades – a voz da velha foi se tornando cada vez mais próxima, até sua figura se tornar visível. Um amontoado de carne cinza, trajando um trapo negro. Cabelos sebosos escorriam no rosto repleto de verrugas. Ela mancava de uma perna.
- Eu poderia? Sim, seria simples, eu poderia acabar com todos os conflitos, traria a paz.
E minha família? E ela?
- Sua família estaria orgulhosa – começou a criança – E nenhuma família sofreria mais.
Sim, nenhuma mais... Poder...
- E então rapaz, o que prefere? Sua família ou poder? – a velha agora estava muito perto de seu rosto. Parecia que algum animal havia morrido dentro de sua boca.
Tudo se confundiu dentro de sua mente. O cheiro de morte e luxuria se misturava em suas narinas, as vozes sedutoras e inocentes se mesclavam em seus ouvidos.
- Então? – o sussurro da mulher veio muito próximo, lembrando um gemido. Ele sentiu sua nuca se arrepiar.
Mal percebeu que não segurava mais a faca e a tocha. Desarmado, agora com a respiração serena e não sentido mais frio, ele respondeu e a resposta saiu de maneira natural, como se tivesse ido até ali, para pedir unicamente isso.

- Poder...

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